Depressão e queixa de memória: o que a ciência revela sobre a relação entre humor e cognição

Depressão pode afetar a memória e aumentar o risco de declínio cognitivo. Entenda como diferenciar sintomas depressivos de sinais precoces de demência.

PREVENÇÃO

8/25/20254 min read

Introdução

A queixa de memória, ou declínio cognitivo subjetivo (SCD), é uma das razões mais comuns de procura por atendimento em saúde mental e geriatria.

Frequentemente, essas queixas surgem antes da detecção de déficits objetivos em testes neuropsicológicos.

Entretanto, sua interpretação clínica é complexa, pois sintomas depressivos podem intensificar a percepção de falhas cognitivas e, ao mesmo tempo, produzir déficits reais de memória e atenção (Rock et al., 2014; Semkovska & McLoughlin, 2010).

O estudo mais recente do consórcio SOL-INCA (Study of Latinos – Investigation of Neurocognitive Aging) avaliou essa associação em mais de 6.000 hispânicos/latinos nos Estados Unidos, trazendo evidências robustas para a prática clínica (Guareña et al., 2025).

Principais achados do estudo

Associação forte entre depressão e queixa de memória Níveis mais altos de sintomas depressivos foram consistentemente associados a piores relatos de SCD global e em domínios específicos (memória, funções executivas e planejamento visuoespacial). O tamanho do efeito variou de pequeno a moderado (β = 0,11–0,48), mas estatisticamente robusto.

Efeito moderador do status cognitivo objetivo Em indivíduos com baixo desempenho em testes de triagem cognitiva, a associação entre depressão e SCD foi 1,25 a 1,4 vezes mais forte do que em indivíduos com desempenho típico.

Importância da “preocupação cognitiva” Participantes que declararam preocupação ativa com sua cognição mostraram uma relação ainda mais forte: a associação entre depressão e SCD foi 2,6 vezes maior nesse grupo.

Fatores culturais e étnicos Os autores destacam que a forma como hispânicos/latinos relatam SCD pode ser influenciada por fatores culturais, como linguagem, educação e desigualdades sociais, o que deve ser considerado em avaliações clínicas.

A depressão e seus efeitos na memória

A literatura demonstra que a depressão não apenas aumenta a percepção de falhas cognitivas, mas pode gerar déficits mensuráveis em memória episódica, memória de trabalho e atenção:

Uma meta-análise com mais de 7.000 participantes mostrou que a depressão maior está associada a déficits robustos em memória episódica e funções executivas, mesmo após a remissão dos sintomas (Rock et al., 2014).

Estudos longitudinais indicam que a depressão recorrente pode acelerar o risco de desenvolver comprometimento cognitivo leve (MCI) e demência, mas também que, em muitos casos, os déficits cognitivos são parciais ou reversíveis com tratamento (Ownby et al., 2006; Semkovska & McLoughlin, 2010).

No envelhecimento, a depressão tem sido considerada um fator de risco independente para Alzheimer, mas também uma condição que pode simular demência, conhecida como pseudodemência depressiva (Alexopoulos, 2005).

Esses achados destacam a importância de distinguir quando a queixa de memória é consequência de humor deprimido, quando indica risco futuro de demência ou quando representa a sobreposição de ambos os fenômenos.

Importância para avaliação e diagnóstico

Avaliação clínica integrada: queixas subjetivas devem ser acompanhadas por investigação de sintomas depressivos, pois estes afetam tanto a percepção quanto o desempenho real em tarefas cognitivas. Neuropsicologia: o uso combinado de testes objetivos (ex.: memória episódica, atenção dividida) com escalas de humor (ex.: GDS, BDI-II) aumenta a acurácia diagnóstica.

Diagnóstico diferencial: diferenciar depressão de condições neurodegenerativas é fundamental. A pseudodemência depressiva pode regredir com tratamento adequado, ao contrário das demências progressivas.

Implicações para prevenção

Monitoramento precoce: sintomas depressivos em idosos com queixas de memória devem ser vistos como sinal de alerta duplo: risco de demência futura e risco de perda funcional relacionada ao humor.

Tratamento da depressão: há evidências de que a melhora do humor pode restaurar parcialmente o desempenho cognitivo (Semkovska & McLoughlin, 2010).

Promoção da resiliência cognitiva: atividades sociais, cognitivas e físicas reduzem tanto sintomas depressivos quanto o risco de declínio cognitivo.

Implicações para tratamento

Psicoterapia e farmacoterapia integradas: depressão deve ser tratada de forma precoce e contínua, evitando o agravamento do impacto cognitivo.

Intervenções cognitivas: treino cognitivo estruturado, realidade virtual e uso de apps de memória podem auxiliar pacientes com queixa subjetiva persistente.

Atenção ao cuidador: em muitos casos, familiares percebem primeiro a sobreposição entre tristeza, apatia e lapsos de memória — o que reforça a necessidade de avaliações multiprofissionais.

Conclusão

A relação entre depressão e queixa de memória é bidimensional: a depressão tanto aumenta a percepção de falhas cognitivas quanto gera déficits objetivos de memória e atenção.

O estudo SOL-INCA (Guareña et al., 2025) amplia essa compreensão em uma população hispânica/latina, mas a literatura internacional confirma que o fenômeno é universal.

Para clínicos e neuropsicólogos, a mensagem é clara: avaliar sintomas depressivos é parte indissociável da investigação de queixa de memória, pois essa integração melhora o diagnóstico diferencial e orienta intervenções eficazes.

Referências

  • ALEXOPOULOS, G. S. Depression in the elderly. The Lancet, v. 365, p. 1961–1970, 2005.

  • GUARÊNA, L. A. et al. Associations between depressive symptoms and subjective cognitive decline among diverse Hispanics/Latinos: Results from the Study of Latinos-Investigation of Neurocognitive Aging (SOL-INCA). International Psychogeriatrics, 2025. DOI: 10.1016/j.inpsyc.2025.100135.

  • OWNBY, R. L. et al. Depression and risk for Alzheimer disease: Systematic review, meta-analysis, and metaregression analysis. Archives of General Psychiatry, v. 63, n. 5, p. 530–538, 2006.

  • ROCK, P. L. et al. Cognitive impairment in depression: a systematic review and meta-analysis. Psychological Medicine, v. 44, p. 2029–2040, 2014.

  • SEMKOVSKA, M.; McLOUGHLIN, D. M. Objective cognitive performance associated with major depression: A meta-analysis and meta-regression analysis. Psychological Medicine, v. 40, n. 10, p. 1797–1808, 2010.